Embora o FGTS seja, em regra, bem particular do trabalhador, ao ser utilizado para a aquisição de imóvel ou benefício da família durante a união estável ou casamento, ele passa a compor o patrimônio comum, devendo ser partilhado.
Partilha do FGTS em União Estável e Casamento: quando o saldo passa a integrar o patrimônio comum
1. Introdução
A discussão acerca da partilha do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) em casos de dissolução de casamento ou união estável tem se tornado cada vez mais frequente nos tribunais brasileiros. O tema revela-se de extrema relevância prática, uma vez que o FGTS, embora seja um direito personalíssimo do trabalhador, frequentemente é utilizado para a aquisição de bens destinados à família, notadamente o imóvel residencial do casal.
A controvérsia se estabelece entre o caráter individual do FGTS — que é fruto exclusivo do trabalho do titular — e o caráter familiar que assume quando é convertido em patrimônio comum, utilizado para a concretização de objetivos do casal, como a compra de moradia. Essa dualidade é enfrentada pela doutrina e pela jurisprudência à luz do regime da comunhão parcial de bens e da presunção de esforço comum prevista no ordenamento jurídico.
O presente artigo tem por objetivo examinar, sob a ótica do Direito de Família e do Direito Patrimonial, a natureza jurídica do FGTS e as hipóteses em que seu saldo passa a integrar o patrimônio comum dos cônjuges ou companheiros, com base em precedentes recentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
2. O FGTS como provento do trabalho pessoal
O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço foi criado pela Lei nº 5.107/1966, sendo atualmente regulado pela Lei nº 8.036/1990. Em termos constitucionais, encontra-se previsto no art. 7º, inciso III, da Constituição Federal, como direito social destinado a proteger o trabalhador contra a despedida arbitrária e a garantir-lhe uma reserva financeira para situações específicas, como aquisição da casa própria, aposentadoria ou doenças graves.
Sob o ponto de vista patrimonial, o saldo do FGTS é considerado provento do trabalho pessoal, isto é, produto direto da atividade laborativa do titular. Por essa razão, o art. 1.659, inciso VI, do Código Civil dispõe que tais valores são excluídos da comunhão, não se sujeitando à partilha em caso de dissolução conjugal.
A doutrina de Maria Berenice Dias é clara ao afirmar que os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge, enquanto não convertidos em bens, não se comunicam, porque correspondem a patrimônio individual ainda não incorporado ao acervo familiar”. (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14ª ed. São Paulo: RT, 2023, p. 403).
Assim, enquanto o FGTS permanecer em sua conta vinculada, não há comunhão, pois ele representa um crédito de titularidade exclusiva, ainda não destinado ao sustento ou benefício da entidade familiar.
3. A mutação da natureza jurídica do FGTS quando convertido em patrimônio comum
Entretanto, a situação jurídica do FGTS sofre alteração significativa quando o trabalhador saca os valores e os utiliza em benefício da família — especialmente para a aquisição de imóvel residencial ou para amortização de financiamento habitacional durante a convivência conjugal.
Nesse momento, o valor originalmente individual adquire natureza comunitária, pois é convertido em bem destinado à família, concretizando a função social da união e a solidariedade patrimonial entre os companheiros.
O Superior Tribunal de Justiça tem consolidado essa interpretação de que quando o montante do saldo do FGTS é sacado e utilizado para a aquisição de bens na constância da união estável ou do casamento, o proveito é revertido em favor da família, passando o valor a integrar o patrimônio comum.
Essa posição reflete o entendimento de que, embora o FGTS tenha origem em proventos individuais, sua destinação em benefício comum descaracteriza o caráter personalíssimo do crédito, incorporando-o ao patrimônio a ser partilhado.
4. A comunhão parcial de bens e a presunção de esforço comum
Nos termos do art. 1.725 do Código Civil, na ausência de contrato escrito dispondo de forma diversa, as relações patrimoniais na união estável regem-se pelo regime da comunhão parcial de bens. Esse regime estabelece que todos os bens adquiridos na constância da convivência são presumidamente fruto do esforço comum dos companheiros, independentemente de qual tenha contribuído financeiramente de forma mais expressiva.
Tal presunção decorre de um princípio basilar do direito de família contemporâneo: a igualdade de esforços e deveres na constituição do patrimônio familiar. Assim, mesmo que o imóvel esteja registrado apenas em nome de um dos companheiros, ou que tenha sido pago com valores provenientes de seu FGTS, presume-se que o bem beneficiou ambos e deve ser partilhado em partes iguais, salvo prova robusta em sentido contrário.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) tem reafirmado tal entendimento de forma reiterada. Em decisão de 2025, destacou-se que: “Imóvel adquirido com FGTS. O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, embora constitua fruto do trabalho pessoal do beneficiário e esteja excluído da comunhão (art. 1.659, VI, do Código Civil), quando sacado e utilizado para aquisição de bem na constância da união estável, reverte-se em favor da família, integrando o patrimônio comum partilhável. 7.1. A sentença deve ser reformada neste ponto para incluir o imóvel adquirido com recursos do FGTS na partilha, porquanto utilizado em prol da família. 7.2. Precedente da Casa: “(...) Tese de julgamento: “1. No regime de comunhão parcial de bens, há presunção de que todos os bens recebidos e adquiridos na vigência da união são revertidos em prol da família, não sendo relevante a parcela de contribuição de cada parte, presumindo-se, também, o esforço comum de ambos para a formação do patrimônio.” (TJDFT, Órgão 2ª Turma Cível Processo N. APELAÇÃO CÍVEL 0704209-03.2022.8.07.0010 APELANTE(S) APELADO(S) Relator Desembargador JOAO EGMONT Acórdão Nº 2048035).
Essa orientação reafirma a ideia de que a destinação familiar dos recursos é o elemento determinante para definir sua comunicabilidade.
5. O caso concreto: o imóvel adquirido com recursos do FGTS
No caso em análise, referente ao imóvel localizado no Condomínio F. G., Gama/DF, a sentença de primeiro grau excluiu o bem da partilha sob o fundamento de que teria sido adquirido mediante utilização exclusiva de saldo de FGTS do apelado.
Contudo, em sede recursal, o Tribunal reconheceu que o saldo do FGTS foi sacado e utilizado durante a união estável para aquisição do imóvel destinado à moradia do casal, razão pela qual os valores passaram a integrar o patrimônio comum, devendo ser objeto de partilha igualitária.
O acórdão ressaltou que, embora o FGTS seja originariamente bem particular, quando empregado na aquisição de imóvel em proveito da família, perde essa característica e passa a compor a comunhão de bens. Assim, a Corte determinou a reforma da sentença, para que o imóvel fosse incluído na partilha, considerando-se a proporção de 50% para cada parte, compreendendo a entrada, as parcelas quitadas e o valor do FGTS utilizado.
O julgado destaca ainda a importância de se observar a função social do patrimônio familiar, entendendo que o sistema jurídico não pode permitir o enriquecimento de um dos conviventes em detrimento do outro, quando os recursos foram empregados para alcançar um objetivo comum de vida.
6. A ratio decidendi e os fundamentos de justiça patrimonial
A razão central dessa linha jurisprudencial reside na teoria da sub-rogação real, segundo a qual, quando um bem particular é substituído por outro destinado à comunhão, transfere-se ao novo bem a natureza jurídica do destino, e não da origem. Assim, ainda que o FGTS tenha caráter pessoal, sua utilização em benefício do casal faz com que se sub-rogue em bem comum, sujeitando-se à partilha.
Além disso, a jurisprudência reconhece que a comunhão parcial de bens tem natureza de sociedade de fato, em que os frutos e os esforços de ambos se somam para a manutenção da família. Dessa forma, a aplicação de recursos provenientes do FGTS na aquisição de imóvel familiar configura contribuição indireta à formação do patrimônio comum, o que justifica sua inclusão na divisão de bens.
Essa linha de raciocínio está em harmonia com o princípio da solidariedade familiar (art. 3º, I, da CF) e com o valor constitucional da proteção da família (art. 226 da CF), que orientam o intérprete a privilegiar soluções que assegurem equilíbrio e equidade entre os ex-consortes.
7. Doutrina e precedentes correlatos
A doutrina majoritária, representada por autores como Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, confirma que os valores de FGTS, quando aplicados em bens comuns, deixam de integrar o patrimônio exclusivo do trabalhador e passam a compor o acervo partilhável, em razão da conversão de sua natureza e da destinação dada ao recurso. (Curso de Direito Civil – Famílias, 11ª ed., 2022).
O STJ e diversos Tribunais de Justiça têm aplicado esse mesmo raciocínio, reconhecendo que o saque e utilização do FGTS em prol da família retira o caráter personalíssimo do fundo, tornando-o patrimônio comum.
Todos reforçam a tese de que o critério decisivo para a partilha é a utilização do FGTS em benefício da família, e não apenas sua titularidade formal.
8. Conclusão
A partilha do FGTS em casos de dissolução de união estável ou casamento demanda uma análise criteriosa do destino dado aos recursos. Se o saldo permanecer depositado na conta vinculada, mantém-se sua natureza de bem particular, excluído da comunhão. Contudo, se for sacado e utilizado para a aquisição de bem imóvel, quitação de financiamento ou melhoria da moradia do casal, o valor passa a integrar o patrimônio comum, devendo ser partilhado em partes iguais.
A jurisprudência atual, amparada em fundamentos constitucionais e na principiologia do Direito de Família, tem buscado garantir justiça patrimonial e equilíbrio econômico entre os companheiros, reconhecendo que o patrimônio familiar é resultado de esforços mútuos, ainda que indiretos.
Assim, no caso analisado, a decisão que determinou a partilha do imóvel adquirido com FGTS durante a união estável encontra-se em plena consonância com a orientação consolidada do STJ e do TJDFT, reafirmando que a destinação familiar dos recursos prevalece sobre a titularidade individual do benefício.
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Autor: David Vinicius do Nascimento Maranhão, OAB-DF 60.662.